15
CONFLITOS ESCOLARES E AS LUTAS POR RECONHECIMENTO: A
MEDIAÇÃO DE CONFLITOS CONSTRUINDO DIÁLOGOS, ALTERIDADE E
RECONHECIMENTO
Fernanda Serrer
1
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), RS. -
BRASIL.
http://orcid.org/0000-0002-7882-5075
Recibido: 21/08/2019
Aprobado: 13/09/2019
Resumo
O trabalho analisa o cenário plural, dinâmico e conflitivo que caracteriza a escola
da contemporaneidade, partindo da constatação de que, se até pouco tempo, o manto
moderno de uma racionalidade de estabilização, normalização e regularidade,
comprometida com a construção e garantia de manutenção de critérios estáveis de
convívio e harmonização social imperou no cenário escolar. Hoje, a multiplicidade de
sujeitos e suas lutas por reconhecimento, travadas sobre o tabuleiro da complexidade da
condição humana, exige a (re)elaboração dos modos de compartilhamento de realidades,
vivências e expectativas identitárias. Nesse sentido, estuda, tendo como referencial
teórico o pensamento de Alex Honneth, as diferentes dimensões das lutas por
reconhecimento travadas muito antes da formação humana institucionalizada. Também
dialoga com a pragmática do agir comunicativo, fazendo uma revisão da racionalidade
moderna a partir da condição inacabada do homem enquanto linguagem e suas
implicações na retomada do debate acerca das tarefas educativas. Elabora uma gramática
complexa dos conflitos interpessoais, capacitando novos olhares sobre o conflito escolar,
1
Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Educação nas Ciências da Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), RS, BRASIL. Professora do Curso de Direito da Unijuí.
Correo: fernanda.serrer@unijui.edu.br
1
16
tendo como horizonte de sentido a teoria sociológica do conflito de Simmel e a mediação
de conflitos como proposta ética de encontro e compartilhamento pacífico com as
múltiplas identidades em desvelando no cenário escolar, a partir do pensamento de Luis
Alberto Warat.
Palavras-chave: Escola. Conflitos Escolares. Reconhecimento. Comunicação. Mediação
Escolar.
Abstracts
The work analyzes the plural, dynamic and conflicting scenario that characterizes the
school of contemporaneity, starting from the observation that, if until recently, the modern
mantle of a rationality of stabilization, normalization and regularity, committed to the
construction and guarantee of maintenance of stable criteria of conviviality and social
harmonization prevailed in the school scenario. Today, the multiplicity of subjects and
their struggles for recognition, fought on the board of the complexity of the human
condition, requires the (re) elaboration of ways of sharing realities, experiences and
identity expectations. In this sense, it studies, using Alex Honneth's thinking as a
theoretical reference, the different dimensions of the struggles for recognition waged long
before the institutionalized human formation. He also dialogues with the pragmatics of
communicative action, reviewing modern rationality based on the unfinished condition
of man as a language and its implications for resuming the debate about educational tasks.
It elaborates a complex grammar of interpersonal conflicts, enabling new perspectives on
the school conflict, having Simmel's sociological theory of conflict as the horizon of
meaning and the mediation of conflicts as an ethical proposal of encounter and peaceful
sharing with the multiple identities unfolding in the school scenario , based on the
thinking of Luis Alberto Warat.
Keywords: School. School conflicts. Recognition. Communication. School Mediation.
1. Introdução
Nos últimos anos a violência, a intolerância e a insegurança têm marcado o cenário
das escolas brasileiras. Notícias veiculadas nos mais diferentes meios de comunicação
dão conta de relatar casos de espancamento, agressões verbais, postagens ofensivas em
17
diferentes redes sociais e, até mesmo, uso de arma de fogo, com vítimas fatais dentro das
escolas, atingindo diretamente os mais variados atributos da personalidade de estudantes,
professores e pais.
Dentre as causas que podem contribuir para o acirramento deste emaranhado
conflitivo destacam-se, o processo crescente de democratização social, aliando a tomada
de consciência das diferentes camadas populares em relação a um conjunto de direitos
considerados universalmente essenciais e fundamentais, desencadeando enfrentamentos
interpessoais e em relação às instituições na busca da efetivação da cidadania; a acelerada
evolução de novos mecanismos de comunicação interpessoal, pelos quais embora “os
rostosnão se encontrem as mensagens são trocadas, imediata e simultaneamente,
podendo contribuir na incidência recorrente de falhas comunicativas; além do
desvelamento de novos atores sociais que buscam o reconhecimento de suas diferenças,
carnavalizando o cenário sociocultural com a diversidade de suas aspirações,
representadas por demandas de caráter jurídico e de valorização da estima pessoal com a
busca pela projeção de suas capacidades e potencialidades individuais, em meio ao
cenário social.
O presente trabalho tem como escopo analisar este cenário plural, dinâmico e
conflitivo que caracteriza a escola da contemporaneidade, partindo da constatação de que,
se até pouco tempo, o manto moderno de uma racionalidade de estabilização,
normalização e regularidade, imperou no cenário escolar, hoje, a multiplicidade de
sujeitos e suas lutas por reconhecimento, exige a (re)elaboração dos modos de
compartilhamento de realidades, vivências e expectativas identitárias, desde os processos
de ensino e aprendizagem até os mecanismos comunicativos necessários ao
reconhecimento e aceitação do outro em sua outridade.
Nesse sentido, o trabalho encontra relevo teórico ao analisar as diferentes
dimensões das lutas por reconhecimento do amor, do direito e da estima social
travadas muito antes da formação humana institucionalizada, tendo como base teórica o
pensamento de Axel Honneth. Propõe-se também fazer uma revisão da racionalidade
moderna a partir da condição humana e suas implicações na retomada do debate acerca
das tarefas educativas.
18
Seguindo na esteira teórica dos autores acima citados, o trabalho assume o
propósito de pensar a elaboração de uma gramática complexa dos conflitos interpessoais,
capacitando novos olhares sobre o conflito escolar. Desse modo, busca amparo teórico
nas contribuições da teoria sociológica do conflito de George Simmel, para, enfim,
apresentar a mediação de conflitos como proposta ética de encontro e compartilhamento
pacífico com as múltiplas identidades em desvelando no cenário escolar, desde o legado
de Luis Alberto Warat.
Para a realização da pesquisa, foi utilizado como método de abordagem o
dedutivo e como método de procedimento o crítico-reflexivo, demonstrando como a
mediação aplicada aos ambientes escolares pode permitir a elaboração de uma nova
gramática para os conflitos escolares.
2. Conflitos identitários, racionalidade moderna e o cenário escolar da
contemporaneidade
As identidades não se constituem e não se proliferam hoje da mesma forma que
no passado. As condições de sociabilidade e o lugar da vida de cada sujeito na estrutura
social mudaram com e a partir do advento da modernidade. A conquista da autonomia, da
liberdade e a valorização das pautas individuais e multifacetadas tem liquefeito a
modernidade, desencadeando um novo estado de coisas em que a insegurança dos
projetos individuais agoniza o sujeito que o encontra uma comunidade reprodutora de
tradição compartilhada e que lhe confira um certo grau de estabilidade (Bauman, 2008).
O cenário social foi invadido por atores em desvelamento. Sujeitos que sempre
estiveram presentes, porém agora se revelam e falam abertamente de sua condição,
reivindicando o reconhecimento de sua diferença seja religiosa, sexual, étnica, racial e de
gênero (Santos e Lucas, 2019). Como destaca Touraine (1999, p. 71) não sabemos quem
somos e “nosso verdadeiro ponto de apoio não é a esperança, mas o sofrimento da
divisão”.
O acirramento desse processo de abandono da ideia de pertencimento a um grupo
coeso traduzido por localizações sociais tradicionais (família, gênero, religião,
nacionalidade, raça) torna o indivíduo uma biografia mais complexa. A identidade
totalmente “unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia (Hall, 2005) e os
19
sujeitos se deparam com uma multiplicidade de sistemas de significação e de
representação cultural, como se a fragmentação das identidades pudesse produzir
vivências entrelaçadas de diferentes culturas dentro de um mesmo indivíduo.
A partir da profunda descontinuidade de vínculos identitários instaura-se o
paradoxo do fortalecimento de grupos e de suas formas de lealdade e de pertença para
com os semelhantes, como que numa tentativa desesperada de estabelecer vínculos de
segurança e igualdade. No entanto, a estratégia de fechamento dos grupos em torno de si
mesmos tem acirrado a guerra do “nóscontra o “eles e forjado pautas jurídicas de
tratamento estratificado, classificado, num claro processo de reconhecimento de suas
especificidades e diferenças.
Como destaca Sawaia (2008) a luta pelo reconhecimento das diferenças, está
ligada a uma ideia de uma identidade usada a serviço da luta pelo poder, que transforma
o direito à diferença em condenação ou obsessão pela diferença, tanto no grupo como
individualmente. Esse processo de consequências avessas faz eclodir uma sociedade na
qual as etnias, culturas, gênero, raças e comunidades apenas pudessem manifestar sua
existência pela diferença de suas identidades (Lyotard, 2004).
Tais questões refletem modos de ver a cultura, e colocam a escola no meio
caminho entre o fortalecimento de lealdades e o desvelamento de identidades,
inaugurando em seu cenário uma lógica cada vez mais hiperindividual e conflitiva.
Os novos feixes de conexão cultual têm afetado sobremaneira os ambientes
escolares. A escola se coloca frente aos desafios encontrados em uma sala de aula
“invadidapor diferentes grupos sociais e culturais, antes ausentes desse espaço, ou ainda
não revelados (Moreira e Candau, 2003). As contradições experimentadas no ambiente
escolar são o produto do que Hall (2003) chamou de “proliferação subalterna da
diferença”, ou seja, tendências emergentes que fogem ao hipercontrole. Em outras
palavras, o espaço escolar é inundado por demandas de pertencimento que eram
praticamente desconhecidas ou invizibilizadas até pouco tempo.
De sua parte a modernidade tratou de fundar sua racionalidade sobre o ideal da
igualdade, tratada como transcendental e constitutiva da natureza humana e a escola como
instituição moderna ainda se nutre de um modelo que seleciona saberes, valores e práticas
20
sob o fundamento de que todos têm direito à educação. Ocorre que “a tentativa de garantir
a igualdade de todos acaba por constituir uma espécie de achatamento de qualquer coisa
que não seja a mesmidade (Schuler e Hennig, 2012, p. 229). A visão homogênea,
padronizadora, monocultural e normalizadora da educação moderna ao selecionar
conteúdos e sujeitos no processo educacional desafia a alteridade, carregando consigo o
mal-estar, a tensão e o conflito que é denunciado na fala de estudantes e de professores.
Avaliando essa crescente tensão entre o ideário moderno da igualdade e alteridade
reveladora do mundo contemporâneo Moreira e Candau (2003, p. 160, grifo da autora)
afirmam que os diferentes, denominados “outros”, os marginalizados, “os
afrodescendentes, os pertencentes aos povos originários, os rappers, os funkeiros [...],
mesmo quando fracassam e são excluídos, ao penetrarem no universo escolar
desestabilizam sua lógica e instalam outra realidade sociocultural”.
A compreensão desta nova realidade passa pela tomada de consciência acerca da
potência das lutas por reconhecimento produtoras dos conflitos identitários travados nos
espaços institucionalizados da formação humana e reclama, do espaço escolar, a
reinvenção de novos modos de administração das divergências oriundas das demandas da
diferença.
3. Lutas por reconhecimento e a mediação escolar como fundadora de uma
nova gramática para os conflitos escolares
Pensar o descortinamento dos conflitos sociais pela ótica da teoria do
reconhecimento de Alex Honneth pressupõe compreender que em processos discursivos,
ou seja, na interação entre proposições e interesses particulares produtoras de relações de
cooperação e dissociação, os atores sociais não se articulam apenas movidos por
pretensões de validade, mas, sobretudo, por expectativas de reconhecimento. Em outras
palavras “o acesso a uma dinâmica pública de argumentação supõe, além do domínio das
regras de interação e das competências comunicativas concomitantes, uma relação
positiva do sujeito consigo mesmo e com o outro(Voirol, 2008, p. 45), sem a qual a
plena participação na esfera pública não pode ser assegurada.
Honneth projeta em três dimensões as lutas por reconhecimento. A primeira esfera
do reconhecimento se no plano dos afetos e tem como ponto de partida as relações
21
primárias, ou seja, aquelas constituídas no amor entre mãe e filho. Para o autor, apoiado
nos estudos do psicanalista inglês Donald W. Winnicott, o processo de amadurecimento,
de constituição da autonomia infantil só pode ocorrer em cooperação intersubjetiva entre
mãe e filho, desde um estágio de “dependência absolutaaté o estágio de “dependência
relativa”, pois ambos os sujeitos dessa díade estão incluídos no início da vida (Honneth,
2003).
Na segunda dimensão, a dimensão do reconhecimento na esfera do direito,
Honneth dialoga com Hegel e Mead, os quais no que concebe ao plano das relações
jurídicas perceberam que podemos nos compreender como titulares de direitos na
medida em que sabemos quais as obrigações temos em relação ao outro. É no
reconhecimento dos membros da coletividade como portadores de direitos que nós
podemos nos entender também como pessoas de direito “no sentido de que podemos estar
seguros do cumprimento social de algumas de nossas pretensões(Honneth, 2003, p.
179).
Por isso, propõe uma análise do direito à ter direitos desvinculada das expectativas
concretas e dos papeis sociais ocupados pelos indivíduos ou grupos na estrutura social
tradicional, pois em igual medida todo o homem é entendido como titular de direitos,
assim o “sistema jurídico precisa ser entendido de agora em diante como expressão dos
interesses universalizáveis de todos os membros da sociedade, de sorte que ele não admite
mais segundo a sua pretensão, exceções e privilégios (Honneth, 2003, p. 181).
A terceira dimensão de reconhecimento é a da estima social. Para Honneth, os
sujeitos humanos precisam além das experiências de dedicação afetiva e de
reconhecimento de seus direitos e correspondentes deveres, de uma estima social que lhes
permita referir-se positivamente em relação as suas capacidades e propriedades pessoais.
Assim, “diferentemente do reconhecimento jurídico em sua forma moderna, a estima
social se aplica às propriedades particulares que caracterizam os seres humanos em suas
diferenças pessoais(Honneth, 2003, p. 199).
Por isso, enquanto o direito moderno representa um meio de reconhecimento que
expressa propriedades universais de sujeitos humanos, a forma de reconhecimento por
estima requer um meio social que avalie as diferenças de capacidades e qualidades entre
22
sujeitos humanos, fundamentando os vínculos intersubjetivos.
A pretensão de universalização na esfera do reconhecimento jurídico, não pode
ser conduzida a uma definição de direitos com contornos tão claros que pudesse ser
pensada de uma vez por todas. Ou seja, embora as lutas por reconhecimento jurídico
sejam travadas em torno da bandeira da supressão de particularismo e de proposições
unilaterais, é impossível definir um modo universal para avaliar o valor das características
e das propriedades de cada sujeito e isso depende dos fatores histórico-sociais, os quais
cada grupo social acaba por definir e interpretar a partir de suas diferentes formas de vida.
Enfim, Honneth, ao analisar a dimensão da estima social trabalha com as lutas por
reconhecimento engendradas por grupos e indivíduos visando a dignidade, a justa
distribuição de bens materiais, a integridade física e o reconhecimento da diversidade de
valores das diversas culturas e modos de vida.
Desse modo, é possível perceber que é no viés da estima social que se encontram
boa parte dos fundamentos que sustentam as lutas por reconhecimento identitário nos
espaços escolares, deflagrando conflitos materializados em reações xenofóbicas,
segregarias, autoritárias, excludentes, marcadas pela intolerância, desnaturação e violação
do outro.
Por tais razões e pela inafastabilidade destas novas pautas identitárias, é preciso
avançar no sentido da formulação de uma gramática mais complexa para os conflitos
escolares, admitindo toda a sua potência na produção de formas de interação social que
possam atender as demandas oriundas das lutas por reconhecimento e, a partir da abertura
em direção a um pensamento não linear e disjuntivo do conflito, revisar as tarefas
reservadas à educação enquanto processo de formação de homens por homens.
Embora possam ser muitas as definições sociológicas para os conflitos, certo
consenso no fato de que o conflito é uma forma de interação entre indivíduos, grupos,
organizações e coletividades que resultam em choques, contraposições de ideias,
palavras, valores e até mesmo armas, motivado pelo acesso e pela distribuição de recursos
escassos, como o poder, a riqueza, o prestígio.
Rigalia (1998) pontua duas correntes antagônicas na definição das acepções dos
conflitos interpessoais. Uma primeira, dos que veem, nos grupos sociais e
23
organizacionais, a harmonia e o equilíbrio Comte, Spencer, Pareto, Durkheim, Parson
– e, por conseguinte, tomam o conflito como uma patologia social, um mal que deve ser
reprimido e eliminado, e os segundos, Marx, Stuart Mill, Simmel, Dahrendorf que
consideram que os grupos e os sistemas sociais são profundamente marcados por
conflitos, porque em uma sociedade o equilíbrio e a harmonia não são normais. Portanto,
visualizam nos conflitos, potenciais criativos, sementes de mudanças, progressos e
melhoramentos. Identificam conflitos com vitalidade.
Como modo de interação, o conflito destina-se a resolver dualismos divergentes,
logrando unidade mesmo que de modo mais extremo signifique a aniquilação do outro,
seguindo a máxima de que “se você quer paz prepare-se para a guerra”. No dualismo, o
conflito interliga aspectos antagônicos revelando-se em toda a sua complexidade.
Para George Simmel (2013) os indivíduos o atingem a unidade de pensamento
mediante uma harmonização exaustiva, fundada em acordos baseados em normas de
lógicas objetivas, religiosas ou éticas. Segundo ele, a unidade social é o produto de
convergências e divergências entre os membros de um grupo. Um grupo absolutamente
centrípeto e harmonioso, dotado de uma pureza unificadora, é empiricamente irreal. A
estrutura orgânica de um conjunto humano de sociação é produto de seus antagonismos,
é na pluralidade de ideias em contraposição que nasce toda a vivacidade e coesão orgânica
de uma reunião de pessoas.
O pensamento de Simmel (2013) permite elaborar uma nova gramática para os
conflitos, em especial para os novos conflitos escolares, na medida em que afirma que a
unidade e a harmonia não são produto de uma simples e linear aplicabilidade de normas
lógicas e objetivas, mas se dão nos encontros e desencontros, nas antíteses e
convergências. Assim, a compreensão da dimensão criativa do conflito conduz ao âmago
do sujeito e deflagra novas leituras para a regulação das divergências humanas oriundas
das lutas por reconhecimento no espaço contemporâneo das escolas.
No ponto Warat (2001) afirma que para abrir as portas do céu é preciso primeiro
passar pelo inferno e antes de evaporar é necessário ferver, assim, as transformações
alquímicas que podem conduzir à ordem devem ser jogadas sobre o tabuleiro da
autenticidade dos contrários. No ódio, na raiva, na desordem, desnuda-se o caos e as
24
possibilidades de novos arranjos na administração dos conflitos.
Ainda segundo o mesmo autor a chave para a entrega plena ao caos, como pré-
condição de reorganização de um grupo, de uma família, da sociedade, da escola ou
mesmo da humanidade está no viver, no sentir o sentimento, avançar no sentido das
ambiguidades humanas, inacessíveis pela manipulação de conceitos empíricos, pelo
pensamento e pela linguagem da racionalidade lógica (Warat, 2001).
O pensamento conceitual pode ser fragmentário e não dialogar com o real. O
sentimento, por sua vez, implica o convocar do corpo, da contingência, da sensibilidade.
Os processos que vêm do pensamento, especialmente do pensamento fragmentário, em
linhas gerais, conduzem a acordos que não se podem cumprir, pois a totalidade do ser não
está implicada. Os acordos como convergências conflitivas, na perspectiva de uma
gramática complexa, o são apenas acordos de palavras, ou mesmo racionais, são
acordos do coração, ou mesmo sensíveis, da humanidade da humanidade; processos
animados desde os sentimentos nas quais as escolhas implicadas no ser e no viver
renunciam à hipocrisia e dançam na dualidade da moral.
Assim, como uma possível resposta às divergências deflagradas pelas lutas por
reconhecimento no espaço das escolas contemporâneas a mediação apresenta-se como
condutora de uma gramática complexa e positiva dos conflitos escolares fundando um
compromisso ético com a alteridade e a promoção do encontro entre as diferenças com
vistas à construção de referências de objetividade e de pertencimento.
A mediação como “ética da alteridade reivindica a responsabilidade e o
reconhecimento do outro professor, aluno, comunidade escolar - repelindo tendências
dominadoras e revelando-se como um mecanismo adequado de gestão de conflitos
próprios do ambiente escolar. Como refere Fabiana Spengler (2008, p. 321) as
divergências passam a ser vistas como oportunidades alquímicas, as energias antagônicas
como complementares [e] as velhas lentes que classificam e geram distanciamentos vão
para a lixeira”.
O espaço da mediação antes de tudo é o espaço entre o “isto e o “aquilo
traduzido pelo direito fraterno de Resta (2004) como o “estar no meio”, assumindo o
problema, deixando de lado a neutralidade do sentir para alcançar um “lugar comum,
25
participativo, no qual poderá ser promovido o encontro dos extremos, mesmo os mais
antagônicos e conflitantes.
Estamos, pois, neste espaço real, entre dois extremos, dentro dos quais a medietas
conquista a posição difícil, mas rica, do ficar no meio, do compartilhar, do pertencer
comum; não é espaço de subtração [...] A virtude do mediador é aquela de estar no meio,
de compartilhar, e até mesmo do “sujar as mãos”. (RESTA, 2004, p. 125).
Assim, a mediação pode ser definida como forma de tratamento dos conflitos,
visando o restabelecimento da comunicação dos conflitantes. Com o intuito de
proporcionar o resgate do relacionamento entre os envolvidos, especialmente nas relações
continuadas, como são as travadas no cenário escolar. A mediação objetiva evitar a
ressignificação do conflito aparente e permitir a participação efetiva dos sujeitos na busca
de uma real e verdadeira postura democrática em suas relações intersubjetivas.
O diálogo entre mediação e educação relaciona-se com a construção de estratégias
metodológicas que permitam atualizar a escola no contexto da proliferação das diferenças
construindo subjetividades mais aptas a lidar com seus conflitos. Nesse sentido, “não
como separar ensino e alteridade, porque a separação deles conduz à
incomensurabilidade e, em última instância, à indiferença(Santos, 2009, p. 31).
A mediação no contexto escolar se apresenta como uma ação socioeducativa
importante, formando sujeitos conscientes de suas realidades, e da dinâmica das
interfaces com os demais, na medida em que o processo de mediação contribui para o
desvelamento de realidades conflitivas, estimulando os atores escolares a assumirem seus
papéis de modo responsável superando a discriminação, a opressão, a exclusão e outras
manifestações de violência.
Além disso, a mediação como horizonte para pensar a “outridadeno sentido do
que Warat (2004, p 145) chamou de “captura do outro” “permite captar a alteridade ética
do outro e a honestidade que se instala em sua outridade”. A mediação promove o
encontro consigo mesmo “e uma possibilidade de sentir com o outro produzindo “com o
outro a sensibilidade de cada um: o entre-nós da sensibilidade(Warat, 2001, p. 35).
4. Metodologia empregada na elaboração do trabalho
Para a realização da presente pesquisa foi utilizado como método de abordagem o
26
dedutivo para, a partir da abordagem de categorias consideradas fundamentais para o
desenvolvimento do tema tais como identidade; alteridade, diferença, conflito,
reconhecimento, educação, mediação, ética, condição humana –, enfrentar o problema
propriamente dito.
Como método de procedimento utilizou-se o crítico-reflexivo, capaz de
demonstrar como a mediação aplicada aos ambientes escolares pode permitir a elaboração
de uma nova gramática para os conflitos, tendo em consideração as lutas por
reconhecimento e a revisão das tarefas da educação diante do cenário plural e conflitivo
dos espaços de formação humana institucionalizados, forjando sujeitos mais preparados
para administrarem seus conflitos de modo pacífico e positivo.
Aplicou-se como técnica a pesquisa bibliográfica baseada em documentação
indireta. Por outro lado, mediante a pesquisa bibliográfica, foram identificadas as fontes
consultadas, quais sejam: livros, revistas, periódicos, artigos e publicações avulsas
pertinentes ao tema, construindo uma solução para os problemas propostos. Feita a
localização e a obtenção das fontes, foi realizada a leitura do material e após tomados os
apontamentos na forma de confecção de fichas classificadas e armazenadas em fichário
de computador. Por último, foi redigido o texto de acordo com as regras da ABNT.
5. Considerações finais
Os espaços escolares têm sido inundados por demandas individuais e de grupos,
oriundas das diferentes dimensões das lutas por reconhecimento, as quais tendo como
referência teórica o pensamento de Axel Honneth são lutas em busca do
autoreconhecimento ligadas à dimensão do amor, do reconhecimento jurídico, e, pela
valorização da estima pessoal e a projeção das capacidades e potencialidades individuais
em meio ao cenário social.
Tais demandas, até pouco tempo encobertas pelo manto moderno de uma
racionalidade de estabilização e de regularidade, comprometida com a construção de
critérios estáveis de convívio e harmonização social são, na contemporaneidade,
desveladas e, sujeitos que estiveram ausentes por sua invisibilidade, agora se revelam e
falam abertamente de sua condição, reivindicando o reconhecimento de sua diferença seja
religiosa, sexual, étnica, racial e de gênero. Assim, estudantes, professores, pais são
27
também mulheres, índios, negros, imigrantes, refugiados, homossexuais, os quais como
produtos e produtores dos fragmentos de suas múltiplas identidades se entrelaçam no
cenário escolar.
Dos (des)encontros entre os representantes deste quadro policromico de
identidades são possíveis diferentes processos de interação, marcados por reações de
cooperação ou de dissociação, binariamente identificados pelos aparatos objetivos
fornecidos pela racionalidade instrumental como processos de interação positiva e
processos de interação negativa, restando ao conflito social, ou conflito intersubjetivo,
portanto, o caráter negativo e patológico, merecedor de repressão e correção.
Uma gramática complexa dos conflitos percebida por meio das lentes da mediação
de conflitos e fundada teoricamente no pensamento de George Simmel tematiza o conflito
entre atores sociais em nível interpessoal como uma importante forma de sociação, na
medida em que destinado a resolver dualismos divergentes, o conflito pode ser entendido
como um mecanismo de elaboração do consenso, ainda que para tanto seja necessário a
superação do interesse exclusivo de uma das partes conflitantes.
Desse modo, também as lutas por reconhecimento jogadas no tabuleiro da
autencidade dos contrários, ancorada na proposta de uma mediação enquanto ética da
alteridade de Luis Alberto Warat, convoca os espaços institucionalizados da formação
humana, como é a escola, a rever as tarefas reservadas à educação, reinventando-se a
partir de processos educativos, pensados desde a formação dos docentes em educação,
que permitam inaugurar ações de reconhecimento do outro em sua “outridade”,
valorizando a riqueza da alteridade e todo o seu potencial para a formação de laços de
pertencimento, revisados pela identificação dos interesses comuns necessários a
elaboração de referenciais objetivos de convivência.
Ainda, pensar a mediação aplicada aos espaços escolares pressupõe, sem dúvida,
retomar o debate acerca dos modos de produção do conhecimento científico, em especial
no tocante a reificação do próprio homem, operada pelo esforço do racionalismo
comprometido com as trilhas pós-cartesianas de compreensão transcendente da condição
humana, para então, recuperar a razão das garras da instrumentalidade e, retomar as
condições de possibilidade engendradas dentro do paradigma da comunicação ou da
28
linguagem intersubjetiva para viabilizar o consenso e o entendimento público.
Por fim, a elaboração de uma gramática complexa dos conflitos no seio da
mediação de conflitos escolares pode sugerir novas respostas para as questões fundantes
da educação, quais sejam: por que educamos? E quais tarefas reservamos para a
educação? Respostas que passam pelo tema da responsabilidade que nós humanos
assumimos quando, por intermédio da educação, buscamos forjar homens por homens.
No ponto, a mediação de conflitos escolares acena para uma proposta de formação
humana que reconheça a potencialidade inventiva e criativa dos conflitos escolares
recolocando na cena do debate escolar a responsabilidade de “um-para-o-outro. Isto é,
um processo de humanização pela via da educação que seja democrático, plural e
legitimado pelas trocas dialógicas de interesses e razões privadas.
Referências
Bauman, Zygmunt. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual. Tradução de
Plínio Dentzein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da
Silva e Guacira Lopes Louro. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
Honneth, A. Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. São
Paulo: Editora 34, 2003.
Lyotard, Jean-François. La condición postmoderna. Informe sobre el saber. Traducción
de Mariano Antolín Rato. 8. ed. Cátedra: Madrid, 2004.
Moreira, Antonio Flavio Barbosa e Candau, Vera Maria. Educação escolar e cultura(s):
construindo caminhos. Revista Brasileira de Educação. Maio/Jun/Jul/Ago, 2003, n.23,
p.156-168.
Pizzi, Jovino. Ética do discurso: a racionalidade ético-comunicativa. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1994.
Resta, Eligio. Direito Fraterno. Trad. Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul:
EDUNISC, 2004.
Rigalia. Ida. Conflito. In: Bobbio, Norberto; Matteucci, Nicola; Pasquino, Gianfranco
(orgs.). Dicionário de Política. Brasília: Universidade de Brasília, 1998. p. 225-230.
Santos, André Leonardo Copetti; Lucas, Doglas César Lucas. A (In)Diferença no Direito.
29
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019.
Santos, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da
experiência. 7.ed. São Paulo: Cortez, 2009.
Sawaia, Bader. Identidade uma ideologia separatista? In: As armadilhas da exclusão:
análise psicossocial e ética da desigualdade social. Sawaia, Bader. (Org.). 8.ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2008.
Schuler, Betina; Henning, Paula Correa. A figura astuta da igualdade no discurso da
Justiça Restaurativa. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 43, p, jan./mar. 2012, 225-
237. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-
24782017000100255&script=sci_abstract&tlng=pt. Acessado em: 10/10/2017.
Simmel, Georg. El Conflito: sociologia del antagonismo. Madrid: Ediciones sequitur,
2013.
Spengler, Fabiana Marion. Conflito, jurisdição e crise. In: Conflito, jurisdição e direitos
humanos: (des)apontamentos sobre um novo cenário social. Spengler, Fabiana Marion;
Lucas, Doglas César. (orgs.). Ijuí: Ed. Unijuí, 2008.
Touraine, Alain. Podemos viver juntos? Iguais e diferentes. Trad. Jaime A. Clasen e
Ephraim F. Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
Voirol, Olivier. A esfera pública e as lutas por reconhecimento: de Habermas a Honnneth.
Cadernos de Filosofia Alemã, nº11, jan/jun 2008, p. 33-56.
Warat, Luis Alberto. O Oficio do Mediador. Florianópolis: Habitus, 2001.